O projeto "Axé, nós temos patrimônio! Mãe Marli de Iemanjá: memória e o Candomblé em Santa Catarina" teve como objetivo a identificação e catalogação do acervo fotográfico e documental de Mãe Marli, com recursos do Prêmio estadual de Cultura Elisabete Anderle em 2017. Nossa proposta é divulgar, por meio deste projeto, não só as memórias de uma das maiores Iyalorixás do Candomblé no Estado de Santa Catarina, como também levar a cultura de preservação documental, proteção e promoção do patrimônio dos terreiros para o cotidiano dos axés.
Marli Vieira, conhecida como Mãe Marli de Iemanjá, é considerada uma das pioneiras do Candomblé no Estado, sendo a primeira a fundar um terreiro de Candomblé de Ketu na cidade de em Joinville. A quantidade de iniciações de adeptos ( filhos de santo ) de Mãe Marli descrita nos relatos e entrevistas feitos ao Projeto é expressiva, havendo expansões de algumas filiais dentro e fora do do estado de Santa Catarina.
O patrimônio documental religioso afro brasileiro consiste nos acervos produzidos pela comunidade religiosa. As cerimônias, vida social e cotidiana do sacerdote e seus adeptos são registrados em diferentes suportes e formatos, dos quais se destacam as anotações, documentos pessoais e fotografias. Estes registros fazem parte da construção da memória de um terreiro, geralmente por meio da contingência, sem preocupação metodológica. Nesta perspectiva surgiu o interesse em identificar, organizar e disponibilizar, ao menos em parte, o acervo de Mãe Marli de Iemanjá. Este site é o resultado desses esforços iniciais.
Pensar o patrimônio sacro afro-brasileiro é um desafio para nós que acreditamos que somos muitos e diversos. É pensar que nossa cosmovisão constrói suportes pedagógicos e de informação riquíssimos. Sabemos que a oralidade é a guardiã de nossa tradição e que é através dela que ouvimos, fazemos e produzimos um universo de registros, sejam estes guardados impressos, escritos, fotográficos, audiovisuais, imagens e sons nas mais variadas formas de tecnologia.
O saber guardar africano permeia nosso meio a cada momento. A importância desse saber perpassa os limites do ser, sentir e estar, pois nossos dogmas se apoiam nas memórias. É comum encontrar nos terreiros, suportes de informação e memória, que fazem parte de cenários, alguns com acesso e outros com restrições de manuseio e guarda.
Mãe Marli de Iyemonjá Ogunté é uma personagem muito importante para o entendimento da expansão e estabelecimento das religiões afro-brasileiras no Sul do Brasil. Sua atuação dentro desse campo religioso ganha notoriedade ao tomarmos o caso das agremiações religiosas candomblecistas. Ela foi uma das precursoras dessa religião no estado ao estabelecer um ilê axé em Joinville, no ano de 1982.
A ressonância de um território que acolheu milhares de imigrantes se traduziu na configuração e expansão do candomblé em Santa Catarina, tendo como caraterísticas principais o hibridismo e a diversidade. Dessa forma, as narrativas de filiação à tradição do ilê axé apontam para diversas ramificações. Todavia, não é custoso entender que o modelo afro-baiano foi preponderante, apesar dos elementos do Batuque gaúcho que também eram cultuados pelo egbè por ela capitaneado.
Marli Vieira nasceu em 05 de março de 1945, em Guaramirim/SC, filha de Alexandre Vieira (in memorian) e de Maria Cidral (in memorian). Foi mãe de Agnaldo Mogi Pereira, Carlos Alberto Vaz Ferreira (in memorian), Amerli de Ávila, Gabriela Vieira dos Santos, e Janaína de Souza. O “sono do corpo” veio muito cedo para Iyà Marli, em 20 de setembro de 1993. Sua atuação frente ao egbè de Iyemonjá Oguntè, apesar da curta duração de sua vida, foi intensa o suficiente para consolidar a presença e repertoriar a cidade com as narrativas e experiências vinculadas às religiões e religiosidades afro-brasileiras e de provocar nos adeptos, simpatizantes e estudiosos, o respeito, o encantamento e a disposição para o entendimento e a construção de uma cultura de respeito e de reconhecimento, essenciais a essas práticas religiosas.
Foi mãe-de-santo de centenas de pessoas, iniciadas para diversos orixás. As narrativas apontam para sua eficácia no jogo de búzios. Essas e outras peculiaridades de sua trajetória fazem sua memória ser exaltada por todos os que procuram se vincular às religiões dos orixás na Manchester Catarinense. Certamente, é digna de ser reconhecida como uma ancestral nos rituais que invocam a memória de pessoas importantes para as religiões afro-brasileiras. Seu legado é o da coragem, perseverança e fé nos orixás e entidades, evidenciado no investimento de implantação de um espaço sagrado afro-brasileiro, num tempo em que tal performance era novidade e causava estranhamentos. Mais do que hoje, a Joinville da década de 1980 se identificava com o discurso de valorização da cultura europeia e estava em franca expansão populacional e econômica.
A construção e o compartilhamento de memórias são por si só um ato louvável. A evidência dada a uma mulher sacerdotisa reforça o papel de destaque que as lideranças femininas sempre tiveram nas religiões de culto aos orixás e imprime, ao contexto em questão, a necessidade de zelarmos pelos suportes de memória que, associados à oralidade, servem à consolidação da tradição e de combustível para a luta de todo o povo-de-santo por respeito, dignidade e cidadania.